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A mesa onde trabalho tem onze gavetas: cinco de cada lado e uma no meio. Nas gavetas laterais eu coloco as idéias que me aparecem, rabiscadas em pedaços de papel, cada uma delas no lugar que lhe pertence. Tem a gaveta da poesia, da psicanálise, das estórias infantis, da educação. Havendo tempo e desejo a gente vai lá, põe tudo em ordem, e a bagunça vira um livro. A gaveta do meio é diferente. Nela eu não arquivo idéias. Guardo objetos, os mais estranhos e inesperados. Por exemplo, um saquinho de bolinhas de gude. Para quê? Não sei. Faz tempo que não jogo gude.
Acho que as guardei lá pela mesma razão que os namorados de outros tempos colocavam uma flor entre as páginas de um livro: para preservar um momento de felicidade, perdido.
Junto com as bolinhas de gude moro eu, menino que só existe como saudade. De todas as gavetas, acho que esta e a que mais se parece com a nossa cabeça, baú entulhado com memórias de felicidades que tivemos. No mais das vezes tudo fica esquecido, na gaveta e no baú, pois as pressões da realidade deixam pouco tempo para o devaneio.
Mas, vez por outra, uma imagem inesperada faz acordar os objetos adormecidos. Eles se mexem, vem a saudade, e a gente se põe a procurá-los. Não e por isto que temos álbuns de retratos? Arquivos paralisados de felicidades perdidas que retornam quando de novo os vemos.
Pois foi o que aconteceu com minhas bolinhas de gude. E a culpada foi a Mariana. Acontece que ela começou a descobrir o mundo, e dentre todas as infinitas formas que a natureza esbanja, foi das bolinhas que ela se enamorou. Via bolinhas em tudo: ervilhas, moedas, brincos, botões, cerejas, lua, estrelas. Com o seu dedinho ia apontando enquanto a boca repetia a palavra mágica. Foi então que me lembrei das minhas bolinhas de gude. Escarafunchei a gaveta da saudade e fiz-lhe esta espantosa revelação: também eu brincava com bolinhas.
Uma menininha e três bolinhas de gude. Ela brinca. Seus olhos e seus gestos revelam uma enorme alegria.
Pois há tantas coisas divertidas que podem ser feitas com bolinhas: podem ser roladas na mão, podem ser roladas no chão, podem ser jogadas para cima, podem ser batidas umas nas outras, podem ser escondidas. As bolinhas são suas professoras. Estão lhe dizendo: Vê? O mundo é assim, como nós, bolinhas, brinquedos. O mundo é um grande brinquedo.
Tantas coisas divertidas se podem fazer com ele. O mundo é para ser brincado. Os adultos não sabem os professores não percebem: o mundinho da menina com as três bolinhas de gude resume tudo o de importante a ser aprendido: a vida é para ser brincada. Tudo o mais que se aprende geografia, história, física, química biologia, matemática, são bolinhas de gude: brinquedos, objetos de prazer.
Brinquedo não serve para nada. Terminado, guardam-se as bolinhas de gude no saquinho e o mundo continua como era. Nada se produziu, nenhuma mercadoria que pudesse ser vendida, não se ganhou dinheiro, não se ficou mais rico. Pelo contrário: perdeu-se. Perdeu-se tempo, perdeu-se energia. Por isto que os adultos práticos e sérios não gostam de brincar. O brinquedo é uma atividade inútil. E, no entanto, o corpo quer sempre voltar a ele. Por quê? Porque o brinquedo, sem produzir qualquer utilidade, produz alegria. Felicidade é brincar. E sabem por quê? Porque no brinquedo nos encontramos com aquilo que amamos. No brinquedo o corpo faz amor com objetos do seu desejo. Pode ser qualquer coisa: ler um poema, escutar uma música, cozinhar, jogar xadrez, cultivar uma flor, conversa fiada, tocar flauta, empinar papagaio, nadar, ficar de barriga para o ar olhando as nuvens que navegam, acariciar o corpo da pessoa amada - coisas que não levam a nada. Amar é brincar. Não leva a nada. Porque não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Coisas que levam a outras, úteis, rebelam que ainda estamos a caminho: ainda não abraçamos o objeto amado. Mas no brinquedo temos uma amostra do Paraíso. Dizem que o trabalho enobrece. Poucos se dão conta de que ele embota, cansa e emburrece. É certo que Deus, todo-poderoso, trabalhou seis dias para criar o mundo. Foi o mesmo que levou para tirar de dentro da gaveta dos seus sonhos as bolinhas de gude para a brincadeira da vida. Trabalhou para criar um lugar de deleite onde a vida atingisse sua expressão suprema: pura inutilidade, puro gozo, puro brinquedo. A única finalidade do saber adulto é permitir que a criança que mora em nós continue a brincar.
O mundinho da Mariana é muito pequeno. Não vai muito além dos seus braços e das suas perninhas que mal aprenderam a andar. Ela brinca com coisas: bolinhas de gude, bonecas, panelinhas. Nisto ela se parece muito com os gatinhos, cães, potros, que também gostam de brincar. Mas ela já tem uma coisa que eles não têm - uma varinha mágica de condão que fará toda a diferença: ela está aprendendo a falar. A alegria não está só quando ela tem as bolinhas em suas mãos. Ela ri ao falar o nome, mesmo que não haja bolinha alguma por perto: ela brinca com as palavras.
Bolinha, bolinha, bolinha, ela diz. E seu rosto se ilumina. Pelo poder da palavra ela é capaz de brincar com coisas ausentes. Já aprendeu o segredo da poesia.
Pois o que e um poema? É claro que não é a coisa. Se o poema fosse a coisa ele seria supérfluo, desnecessário, pura tautologia. O poema é um objeto impossível que construímos pela magia do jogo das palavras.
Isso mesmo: jogo das palavras: palavras são brinquedos. O silêncio verde dos campos... Onde já se viu isto? Silêncio verde não existe. Mas o poeta brinca com as palavras e o silêncio verde aparece. Quando a Mariana chama as ervilhas e as estrelas pelo mesmo nome, bolinha, ela revela já haver aprendido a transformação básica da fala poética, a metáfora. Pois tanto poderá ver o seu prato cheio de estrelas como poderá ver o céu como um prato divino cheio de ervilhas. E não digam
que estou indo longe demais, pois foi assim mesmo que surgiu o nome Via Láctea - as infinitas gotas do leite espirrado do seio de uma mãe divina sobre o firmamento.
Pois é: ela aprendeu a falar. E ao falar aprendeu a brincar com as palavras. E ao aprender a brincar com as palavras, ela aprendeu a brincar com coisas que não existem. E ao aprender a brincar com coisas que não existem aprendeu a pensar! Lembre-se do que disse Valéry: O pensamento é, em resumo, o trabalho que faz viver aquilo que não existe!
Pense sobre isto: um chato é uma pessoa que não sabe brincar com o inexistente. É aquela pessoa que, depois de ouvir a piada que faz todo mundo rir, faz a pergunta:
Mas isto aconteceu mesmo? Coitado. Só sabe brincar com bolinhas de vidro. Não sabe brincar com bolhas de sabão. O que me leva a enunciar o resumo de minha filosofia da educação, que só me ficou clara quando vi a Mariana brincando com as palavras:
Acho que as guardei lá pela mesma razão que os namorados de outros tempos colocavam uma flor entre as páginas de um livro: para preservar um momento de felicidade, perdido.
Junto com as bolinhas de gude moro eu, menino que só existe como saudade. De todas as gavetas, acho que esta e a que mais se parece com a nossa cabeça, baú entulhado com memórias de felicidades que tivemos. No mais das vezes tudo fica esquecido, na gaveta e no baú, pois as pressões da realidade deixam pouco tempo para o devaneio.
Mas, vez por outra, uma imagem inesperada faz acordar os objetos adormecidos. Eles se mexem, vem a saudade, e a gente se põe a procurá-los. Não e por isto que temos álbuns de retratos? Arquivos paralisados de felicidades perdidas que retornam quando de novo os vemos.
Pois foi o que aconteceu com minhas bolinhas de gude. E a culpada foi a Mariana. Acontece que ela começou a descobrir o mundo, e dentre todas as infinitas formas que a natureza esbanja, foi das bolinhas que ela se enamorou. Via bolinhas em tudo: ervilhas, moedas, brincos, botões, cerejas, lua, estrelas. Com o seu dedinho ia apontando enquanto a boca repetia a palavra mágica. Foi então que me lembrei das minhas bolinhas de gude. Escarafunchei a gaveta da saudade e fiz-lhe esta espantosa revelação: também eu brincava com bolinhas.
Uma menininha e três bolinhas de gude. Ela brinca. Seus olhos e seus gestos revelam uma enorme alegria.
Pois há tantas coisas divertidas que podem ser feitas com bolinhas: podem ser roladas na mão, podem ser roladas no chão, podem ser jogadas para cima, podem ser batidas umas nas outras, podem ser escondidas. As bolinhas são suas professoras. Estão lhe dizendo: Vê? O mundo é assim, como nós, bolinhas, brinquedos. O mundo é um grande brinquedo.
Tantas coisas divertidas se podem fazer com ele. O mundo é para ser brincado. Os adultos não sabem os professores não percebem: o mundinho da menina com as três bolinhas de gude resume tudo o de importante a ser aprendido: a vida é para ser brincada. Tudo o mais que se aprende geografia, história, física, química biologia, matemática, são bolinhas de gude: brinquedos, objetos de prazer.
Brinquedo não serve para nada. Terminado, guardam-se as bolinhas de gude no saquinho e o mundo continua como era. Nada se produziu, nenhuma mercadoria que pudesse ser vendida, não se ganhou dinheiro, não se ficou mais rico. Pelo contrário: perdeu-se. Perdeu-se tempo, perdeu-se energia. Por isto que os adultos práticos e sérios não gostam de brincar. O brinquedo é uma atividade inútil. E, no entanto, o corpo quer sempre voltar a ele. Por quê? Porque o brinquedo, sem produzir qualquer utilidade, produz alegria. Felicidade é brincar. E sabem por quê? Porque no brinquedo nos encontramos com aquilo que amamos. No brinquedo o corpo faz amor com objetos do seu desejo. Pode ser qualquer coisa: ler um poema, escutar uma música, cozinhar, jogar xadrez, cultivar uma flor, conversa fiada, tocar flauta, empinar papagaio, nadar, ficar de barriga para o ar olhando as nuvens que navegam, acariciar o corpo da pessoa amada - coisas que não levam a nada. Amar é brincar. Não leva a nada. Porque não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Coisas que levam a outras, úteis, rebelam que ainda estamos a caminho: ainda não abraçamos o objeto amado. Mas no brinquedo temos uma amostra do Paraíso. Dizem que o trabalho enobrece. Poucos se dão conta de que ele embota, cansa e emburrece. É certo que Deus, todo-poderoso, trabalhou seis dias para criar o mundo. Foi o mesmo que levou para tirar de dentro da gaveta dos seus sonhos as bolinhas de gude para a brincadeira da vida. Trabalhou para criar um lugar de deleite onde a vida atingisse sua expressão suprema: pura inutilidade, puro gozo, puro brinquedo. A única finalidade do saber adulto é permitir que a criança que mora em nós continue a brincar.
O mundinho da Mariana é muito pequeno. Não vai muito além dos seus braços e das suas perninhas que mal aprenderam a andar. Ela brinca com coisas: bolinhas de gude, bonecas, panelinhas. Nisto ela se parece muito com os gatinhos, cães, potros, que também gostam de brincar. Mas ela já tem uma coisa que eles não têm - uma varinha mágica de condão que fará toda a diferença: ela está aprendendo a falar. A alegria não está só quando ela tem as bolinhas em suas mãos. Ela ri ao falar o nome, mesmo que não haja bolinha alguma por perto: ela brinca com as palavras.
Bolinha, bolinha, bolinha, ela diz. E seu rosto se ilumina. Pelo poder da palavra ela é capaz de brincar com coisas ausentes. Já aprendeu o segredo da poesia.
Pois o que e um poema? É claro que não é a coisa. Se o poema fosse a coisa ele seria supérfluo, desnecessário, pura tautologia. O poema é um objeto impossível que construímos pela magia do jogo das palavras.
Isso mesmo: jogo das palavras: palavras são brinquedos. O silêncio verde dos campos... Onde já se viu isto? Silêncio verde não existe. Mas o poeta brinca com as palavras e o silêncio verde aparece. Quando a Mariana chama as ervilhas e as estrelas pelo mesmo nome, bolinha, ela revela já haver aprendido a transformação básica da fala poética, a metáfora. Pois tanto poderá ver o seu prato cheio de estrelas como poderá ver o céu como um prato divino cheio de ervilhas. E não digam
que estou indo longe demais, pois foi assim mesmo que surgiu o nome Via Láctea - as infinitas gotas do leite espirrado do seio de uma mãe divina sobre o firmamento.
Pois é: ela aprendeu a falar. E ao falar aprendeu a brincar com as palavras. E ao aprender a brincar com as palavras, ela aprendeu a brincar com coisas que não existem. E ao aprender a brincar com coisas que não existem aprendeu a pensar! Lembre-se do que disse Valéry: O pensamento é, em resumo, o trabalho que faz viver aquilo que não existe!
Pense sobre isto: um chato é uma pessoa que não sabe brincar com o inexistente. É aquela pessoa que, depois de ouvir a piada que faz todo mundo rir, faz a pergunta:
Mas isto aconteceu mesmo? Coitado. Só sabe brincar com bolinhas de vidro. Não sabe brincar com bolhas de sabão. O que me leva a enunciar o resumo de minha filosofia da educação, que só me ficou clara quando vi a Mariana brincando com as palavras:
o professor é aquele que ensina a criança a fazer flutuar suas bolinhas de vidro dentro das bolhas de sabão. Tudo o que é pesado flutua no ar.
Rubem alves
Rubem alves
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